Capítulo 2: Biff Brannon - Parte 1 - "O Coração é Um Caçador Solitário" - Carson McCullers


Este único romance de Carson McCullers não possui nas divisões entre seus relativamente curtos capítulos e também não possuem qualquer título. Apenas numerações. Além disso, o livro é dividido em três partes. São no total 25 capítulos, sendo 6 capítulos presentes na primeira parte, 15 na segunda parte e 4 capítulos na terceira e última parte. 

Em regra, cada capítulo capítulo apresenta a visão de uma das personagens principais, sendo que a história das cinco personagens principais (John Singer, Biff Brannon, Mick Kelly, Jake Blount e Benedict Mady Copeland) frequentemente se cruzam.

Lembro de na época em que li este livro pela primeira vez, estava lendo paralelamente a ele mais uma obra, que é o livro "Reparação", de Ian McEwan. E o motivo pelo qual cito isso é justamente devido a semelhança (ora remota, ora muito próxima) entre as divisões da obra sendo marcadas sobretudo pela alteração de perspectivas, visões, sentimentos dessas pessoas diante de situações em que suas vidas se entrecruzam, seja por alguma coincidência ou mesmo por terem certa "convivência" e proximidade diárias. 

O contraste entre diferentes visões sobre um momento acontecimento, sendo com interpretações completamente diferentes de um mesmo gesto; ou pela incompreensão; ou pela convergência de pensamentos... 

Acho que teria dificuldade em relatar como exatamente esse sentimento entra em você quando está lendo, pois é como se você fosse onisciente naquela história (evidentemente, como em todas as demais histórias escritas), mas uma onisciência que causa certo estranhamento e questionamento, e isso porque algumas coisas parecem serem tão óbvias para apreender e interpretar, e quando nos deparamos com isso, da forma como é colocada por Carson McCullers principalmente, é realmente estranho. Porque, apesar de em um primeiro momento parecer muito óbvio, quando lemos o estado emocional, psíquico e mesmos os horizontes sociais de cada personagem, nos deparamos com algo perturbador (ou ao menos para mim isso se figura como perturbador): todas as personagens têm razão, não que haja qualquer disputa clara nesta obra, mas é impossível simplesmente falar que tudo que interpretaram são coisas apenas da cabeça das personagens (e aqui coloco uma frase que ultimamente tem persistido, como em um loop, na minha mente: "it's not just in your head", "it's not just in your head", "it's not just in your head", "it's not just in your head"...), que são coisas imaginárias, que são interpretações erradas dos fatos, que contém uma realidade e um mundo distorcido, porque isso simplesmente não é verdade. Não há esta possibilidade de escolher, há essa diversidade interpretativa e sensorial, condicionada, acredito, mesmo que não integralmente, pelo que Sonia Moreira (a tradutora da obra) chamou de "estreiteza de horizontes". 

Temos um porém nisso tudo. E esse porém, neste livro, é a lacuna de comunicabilidade. As personagens que têm lutas tão diversas, mas ao mesmo tempo possuem sentimentos, dilemas e necessidades tão parecidos, poderiam se conectar e possibilitar maiores encontros pessoais e (novamente a santa interpretação) interpretativos de atitudes, falas, gestos possibilitando uma maior compreensão e aceitação, que é o que no fundo toda pessoa precisa: ser compreendida e aceita, características do que para mim pode ser colocado sob o significado de "pertencer" ou também acho que a palavra "acolhimento" pode se encaixar aqui.

                                                             É sobre isso: ser ouvida. Ou...



Nas palavras da Carson mesmo.


Li em um comentário de uma resenha sobre este livro uma leitora que colocou a necessidade das personagens desta forma: "as pessoas só precisavam de alguém para ouvi-las". Colocando em termos mais populares e, de certa forma, muitas vezes utilizadas de uma maneira um pouco pejorativa, nem um pouco famigerada, "carência". 

Um último comentário antes de adentrar mesmo no resumo do capítulo 2, em que é introduzido o segundo personagem principal, Biff Brannon, o dono do restaurante/bar "New York Café", e que é um dos cenários frequentes da trama de McCullers, não só, obviamente, para Biff Branon, mas para todas as demais personagens, gostaria apenas de problematizar mais uma coisa (juro que é a última... ou penúltima): o tema do livro "O Coração é Um Caçador Solitário". Todas as resenhas, vídeos que tenho visto começa com o óbvio, e embora algumas pessoas defendem o mote "o óbvio precisa ser dito", acho que neste caso esta verdade não se aplica neste contexto. E acho que mascara os outros temas essenciais da obra, que para mim orbitam em torna da comunicação, isolamento e a materialização dos problemas sociais nas vidas das pessoas. 

Acho que esta é a grande chave e felicidade na obra de McCullers: os problemas sociais não são ignorados, como problemas subjetivos, mas tampouco entram em cena explicitamente sendo questionados. Mas eles estão ali, pesadamente e quase tangivelmente presente. Você sente isso lendo. Isso porque eles estão no microcosmo social daquelas personagens, os condicionam, os limitam, os enfraquece, e são eles. Os problemas interpretativos, psicológicos têm seu fundo social, de uma forma que é difícil de explicar. Esse interação entre os sentimentos, do que exatamente pode ser algo que poderíamos classificar na área "interpessoal" mais do que na área do social, que geralmente fala de um macro. 

Um parênteses aqui: na verdade, não sei se posso dizer se eles não são explicitamente questionados. As personagens as questionam, e há muito do interpessoal e das questões macro sociais tão intrincadas e difíceis de separar de uma forma clara propriamente. Por exemplo, o que você pensa deste trecho: 


"Muitas vezes, quando eu tô arando ou trabalhando", disse o avô devagar, "eu fico pensando e matutando sobre quando Jesus vai descer de novo aqui na Terra. Por que eu sempre quis tanto que isso acontecesse que eu tenho a impressão de que vai ser enquanto eu ainda tiver vivo. Eu já fiquei matutando sobre isso muitas vezes. E o que eu planejei foi o seguinte. Eu acho que eu vou ficar na frente de Jesus com todos os meus filho, meus neto, meus bisneto, meus parente e meus amigo e aí eu vou dizer para ele assim: 'Jesus Cristo, nós é tudo triste pessoas de cor'. E aí então Ele vai botar a mão santa Dele nas nossa cabeça e na mesma hora nós vai tudo ficar branco que nem algodão. Esse é o plano que eu já fiquei ruminando no meu coração muitas e muitas e muitas vezes. (página 186)


E aqui vem a pergunta: "você pode provar que é um indivíduo?". Você pode provar que as condicionantes sociais não afetam algo na sua vida? Alguma parte da sua vida, qualquer parte, você pode imputar somente a você sem qualquer influência dessa época em que vivemos? Evidentemente o tempo vigente não é algo tão homogêneo quanto possa se pensar, ou tão linear ou tão claro, é complexo, é difícil. O presente tem suas intersecções muito muitas vezes confusa com passado, ou o que achamos ter passado (vide o vídeo incrível do American Museum of Natural History sobre os dinossauros ainda estarem presentes com a gente - eu sei, parece aleatório, mas acredite em mim, assista primeiro e depois, se quiser, pode me falar se essa citação realmente não tem nada a ver), entre "descontinuidades e continuidades", talvez finalmente o paradoxo de Parmênides e Heráclito possa ser citado (mentira, eu cito sempre). 

Espero que tenha feito sentido, espero que essas divagações não tenham sido cansativas para você, mas acho que é uma forma de entender o que vai vir pela frente na obra da Carson (sou íntima dela, por isso chamo pelo primeiro nome, e, na verdade, gostaria de chamar pelo real primeiro nome dela que é "Lula", quem sabe atrairia mais gente para ler, mas daí com certeza seria xingada, tá okay?).


Certo. Chega de divagações, vamos ao capítulo, em que, como foi dito, Biff Brannon nos é apresentado. 

Na verdade, Carson faz uma descrição inicial de Biff Brannon já no capítulo anterior, que é quando os caminhos de John Singer e Biff Brannon se cruzam pela primeira vez, depois de Singer ter se mudado para uma pensão perto do centro e deixado para trás o apartamento que havia morado por mais de 10 anos com seu amigo Antonapoulos, agora internado em um asilo para "loucos", em uma cidade distante. Carson o descreve como "(...) um homem forte, de estatura mediana, e tinha uma barba tão escura que a parte de baixo do seu rosto parecia moldada em ferro". Talvez uma descrição não tão importante, mas apenas coloco para você poder visualizar como a Carson criou ele. E falo de não ser tão importante porque o que parece se destacar mesmo é justamente a "investigação psicológica" (mais uma vez uma expressão utilizada pela tradutora aqui) destas personagens, mas também acho arriscado falar o mesmo das descrições físicas de personagens como a Mick, que será apresentada no capítulo 3 do livro. 

O capítulo começa com Biff Brannon em seu restaurante, e, como permanece na maioria das cenas que aparece no livro, sempre atrás do balcão do New York Café observando seus clientes. Já passava da meia-noite, mas Brannon não demonstra nenhum desejo para que aquelas pessoas fossem embora.

Ele observava, com especial atenção, homem "atarracado, vestido de macacão, que tinha ficado bêbado e agitadiço". Brannon, observando este homem, que se chama Jake Blount (e é uma das cinco personagens principais dessa obra), decide subir para seu quarto que no andar imediatamente superior ao restaurante,  para pegar os pertences daquele homem, que dias atrás havia sido confiscado por sua esposa, já que Blount já não pagava mais o que estava consumindo no restaurante havia cinco dias.

Biff Brannon entra no aposento, de forma silenciosa, visto que estava tudo escuro e sua esposa, Alice, estava dormindo. Mas, depois de conseguir pegar a maleta outrora confiscada, Alice acorda, ascende a luz e questiona Brannon do porque está pegando a maleta novamente. E aí começa uma discussão entre eles.

Já no início, Carson evidencia a relação conflituosa entre Biff e Alice Brannon. Eles, por exemplo, não se chamavam pelos seus respectivos nomes, mas sim pelo pronome "senhor" e "senhora". A explicação do porquê disse é provida, mas não explica necessariamente porquê aquilo se arrastou pelo tempo e proporcionou, ou na verdade, somente expressou um distanciamento psicológico e emocional já existente entre os dois.

É interessante notar nessa discussão que o casal tem, a diferença e incompatibilidade de pensamentos entre ambos, e uma sugestão, por Alice, de algo, que considera grave, que Brannon tenha feito. 

Alice questiona o porquê seu marido deixa Jake Blount, que fica bêbado a maior parte do tempo, e, segundo ela, assusta os clientes "decentes", continuar frequentando o New York Café, mesmo não pagando, classificando Blount como parasita, além de ficar extremamente irritada com a atitude de Biff ao querer devolver a maleta. Alice fala de sua incompreensão do porquê seu marido estava defendendo e protegendo uma pessoa como Blount, que não passava de "um vagabundo e uma aberração". Biff responde: 

                    Eu gosto de aberrações.

A resposta de Biff é muito interessante, principalmente para pessoas que já leram outras obras da Carson, como "A Balada do Café Triste", que é uma coletânea de contos da autora. Se você ler o conto que dá o título à coletânea você vai, muito provavelmente ter a sensação que tive, e que, conforme minhas (ainda) superficiais pesquisas sobre a impressão de outros leitores desse conto também tiveram, que foi a sensação do absurdo, do irracional, do ridículo, do estranho, mas ao mesmo tempo tão perto do considerado "normal", e também extremamente razoável se fizermos um esforço para entender o que estava presente e prevalecia ali sem censura e sem disfarces: os sentimentos, por mais que não "apropriadamente" ou organizadamente exteriorizados. 

É como se fosse uma exteriorização "cru", rústica, dura dos sentimentos interiores das personagens, porque parece por às claras uma reminiscência material e simultaneamente intangível do que nossa espécie quer ignorar: nossa biologia - somos animais. 

As convenções sociais colocam uma máscara, uma maquiagem da expressão e comunicação adequadas para tentar conter, por exemplo, os impulsos e sentimentos não apropriados para a época. E aqueles que não se ajustam e se desviam disso, são os geralmente colocados num espectro de desordem psicológica e social. São escondidos, ignorados e colocados à margem. Mas o recado da Carson  é de que eles não deixam de existir, independente do apagamento. 

E veja, não parece ser algo destinado propriamente aos mecanismos que propiciam coesão social, como várias das convenções da linguagem, da expressão e da comunicação, definitivamente não é isso. Mas sim um apontamento de que isso não é perfeito, e de que, na verdade, pela ideologia, visão, valores, história, geografia, origem e mesmo políticos e econômicos - apesar de muitas pessoas defenderem uma neutralidade para a linguagem e a comunicação, sem reconhecer uma construção social que inevitavelmente marca de forma profunda essa comunicação com os padrões micro e macro sociais que se retroalimentam e lembram, por exemplo, muito símbolo de ouroboros de "História Sem Fim", onde você não sabe onde algo se inicia e onde acaba propriamente - que essas convenções carregam, excluem muitas pessoas, muitas experiências do campo da expressão e, assim, da vida, que requer sim reconhecimento e o mínimo de conexão entre as pessoas. 

Símbolo ouroboros aqui, caso você não conheça.
E lembre que é só uma analogia.


Carson fala das "aberrações", não as mascara, não as julga, não as conclui, mas as apresenta, tenta investigar elas, mostrando que, na verdade, são pessoas extremamente normais, mas que estão em um contexto social, econômico, político (lembra da citação da terapeuta Harriet no post anterior quando ela fala da psicologia e da bioquímica estar intimamente ligada à questões sociais?), sentindo elas, conscientes ou não, as diversas expressões de coação e coesão social. A estrutura social e as convenções de uma temporalidade e geografia entram nos "poros" do indivíduo, alterando suas relações, seu sentir, sua visão, não a determinando integralmente, porque também estes fatores sociais tem algo do indivíduo agindo e reagindo a estes cercos dos construtos sociais. Temos aqui um impasse? Durkheim X Weber? Não sei. 

Alice reage à resposta de Biff falando que ele gostava de aberrações porque também era uma. E a discussão fica suspensa por um momento. Biff não responde, vai ao banheiro, lava seu rosto, observa que ainda daria tempo de se barbear antes de voltar para o restaurante, pois sentia sua barba pesada. Durante este processo exterior, em seu interior Biff observa por um momento Alice através do reflexo do espelho. Ela estava deitada, quase voltando a dormir. Ele pensa em como se "apequena" perto dela, de como parece não ser ele mesmo quando está com ela. Pensa e fala para Alice:

"Escuta", disse ele. "O seu problema é que a senhora não tem um pingo de generosidade de verdade. Eu só conheci uma mulher na vida que tinha essa generosidade de verdade que eu estou falando."                                                    [Alice responde] "Bom, eu sei de coisas que o senhor fez que nenhum homem no mundo ficaria orgulhoso de ter feito. Eu sei que o senhor..."                          [Biff a interrompe] "Ou talvez seja curiosidade o que eu estou querendo dizer. A senhora nunca vê, nunca nota nada de realmente importante que acontece. A senhora nunca observa e pensa, nem tenta entender nada. Talvez essa seja a maior diferença entre nós dois, no final das contas." (...)                                     "O prazer de apreciar um espetáculo é uma coisa que a senhora nunca experimentou na vida", disse ele.                                                                          A voz dela estava cansada. "Aquele sujeito lá embaixo é um espetáculo realmente. E um circo também. Mas eu já estou cansada de aturar ele."               "Que diabo, aquele homem não significa nada para mim. Não é meu parente nem meu amigo. Mas a senhora não tem ideia do que é ir juntando detalhes aqui e ali até conseguir formar um todo, uma coisa real." [respondeu Biff] 

Biff procedeu em sua tarefa de se barbear e, enquanto fazia isso, pensava em Jake Blount. De como era um sujeito "incompatível" e confuso, mesmo em sua aparência (e, devo dizer, a descrição feita dessa personagem pela Carson... Eu queria dizer para ela, apesar de ser impossível, que foi a melhor descrição de uma personagem que já li - não vou descrever aqui, porque espero que realmente dê uma change a este livro). Jake Blount era um sujeito baixo, forte, com bigode hirsuto que "parecia falso" e que parecia mais parte de uma fantasia que a qualquer tempo cairia,  parecia ter meia-idade pela características de algumas partes de seu corpo, mas por outro lado, por conta de outras características físicas também parecia jovem (vai entender, né). 

Biff Brannon terminou de se barbear, saiu do quarto (Alice estava dormindo novamente), pegou a mala de Blout que havia deixado no corredor e voltou ao seu posto de sempre atrás, colocando a mala debaixo do balcão.

Biff começou a observar novamente o salão. Reparou que algumas pessoas tinham saído, mas permaneciam ali John Singer, que bebia café em uma das mesas do centro do restaurante, e Jake Blount que permanecia falando sem parar, embora não se dirigisse à ninguém e ninguém estivesse interessado no que ele dizia. 

Biff pensou enquanto ainda estava se barbeando, o quanto não conhecia ninguém que tivesse mudado tanto em apenas 12 dias, que era o tempo que Blount estava na cidade. 

Enquanto Blount falava ele repentinamente alterava seu sotaque, como se pertencesse à localidades diversas, "às vezes falava como se fosse um operário, e outras como se fosse um catedrático", falava e parecia na verdade estar fazendo um discurso político, mas não se sabia sobre o que exatamente. Biff fala sobre sua dificuldade de identificar de qual país exatamente Jake Blount era, e também qual sua região de origem. Nada do que Blount dizia tinha nexo. Mas mesmo assim, para Biff, Blount não era uma pessoa desprovida de inteligência, pelo contrário. Mas o que confundia Biff era as mudanças repentinas de Blount sem nenhuma justificativa ou motivo claro que justificasse mudanças tão bruscas, seja nas palavras, na forma de dizê-las e mesmo no modo de agir de Jake Blount. 

Na próxima passagem, é interessante notar como coisas tão importantes para a história quando se olha para o passado, passa de forma adjacente por aqueles que observam (ou às vezes nem chegam a realmente prestar atenção): Biff Brannon pega o jornal e lê sobre as mais recentes notícias que vinham da "guerra no Oriente" (a Segunda Guerra Mundial), mas trata aquilo como se fosse algo tão trivial, tão remoto, mesmo que tenha uma também remota curiosidade. Esta notícia se mistura com as notícias locais, sobre uma deliberação do conselho municipal sobre não terem orçamento para instalarem sinaleiros em cruzamentos considerados perigosos na cidade. E é um pouco esquisito isso na verdade, porque o livro fala que Biff Brannon leu as duas notícias, tanto das notícias da Segunda Guerra, quanto do sinaleiro que não poderia ser instalado como o mesmo nível de atenção, como se as duas coisas estivessem no mesmo nível de importância para ele. Mas enquanto lia as notícias, pensava ainda em Blount, de fazer algum tipo de acordo com Blount ainda naquela noite.

Mick Kelly entra no restaurante, e chama a atenção de Biff Brannon que pergunta o que ela deseja e o porquê dela estar fora de casa naquela hora adiantada da noite. Mick Kelly, que "à primeira vista, parecia mais um garoto do que uma menina" (sim, essa descrição é relevante para o que se desenvolverá na história), é para mim a personagem mais fascinante da história de Carson, não sei se é pela imediata conexão que tive com ela após saber de sua paixão por música. Ela sonha em compor e em tocar violino. Há cenas com a Mick em que ela descreve composições de artistas como Mozart e Beethoven, mas não sob uma perspectiva "classista", mas sim de como uma conexão tão profunda era possível com composições, em regra, instrumentais - as cenas descrevem o que Mick Kelly entende delas e nós dá outra visão sobre este tipo de música, sinceramente. 

Lembro que na época que li isso, eu ainda estar tocando na Orquestra Jovem da cidade, assim como na banda sinfônica Henrique Marques. Comentei com minha amiga, que também tocava (e ainda toca) clarineta, e falei de como depois que li as passagens que a Mick falava sobre alguns compositores mudou minha forma de interpretar eles, quando algo aparecia no repertório. Não que fizesse extrema diferença para quem estava ouvindo, visto que eu nunca fui solista, ou algo do tipo. Acho que a Mick Kelly, na verdade, é a personagem que senti ser mais próxima do que imagino que Carson McCullers era. Carson estudou em Julliard, uma das melhores escolas de música do mundo, uns anos atrás. Ao menos, Julliard carrega fama por ser uma excelente escola de música e artes, no geral. Carson tocava cello. Por isso o conhecimento, às vezes, muito aprofundado, apesar de não entrar em detalhes técnicos, sobre a música, especificamente a música orquestral/instrumental.

Se a Carson tocasse clarinete, poderíamos 
fazer uma comparação assim. 
Lulas ícones.

Eu não sabia que a Carson havia estudado música, não com certeza na época que estava lendo. Mas lendo o que Mick (que para mim era mais a Carson falando) sentia e pensava, tive uma impressão de um domínio muito grande do que é esse universo, especialmente quando você adentra nele e as dificuldades que você tem/encontra. A vontade, a decepção, a persistência, a apreciação, a admiração... Só alguém que realmente conhece... Pesquisei isso na internet, além de perceber, muito tardiamente, que essa informação estava em uma das "orelhas"/abas do livro, e confirmei que Carson estudou música. Por isso a minha impressão com certa fundamentação (apesar dela estar apenas na área da música), de que a Carson colocou muito dela mesma na personagem Mick. 

Prosseguindo...

Mick Kelly diz a Biff que quer um maço de cigarros. Biff pensa em questionar, mas desiste, e pega o maço de cigarros, enquanto Mick pega o lenço amarrado onde mantinha suas moedas, exatamente 17 centavos, que não pagava o maço de cigarros, mas Biff não reclama ou questiona. Apenas entrega o maço de cigarros para Mick. E estou reduzindo aqui, há entre isso, entre o pedido de Mick e a entrega do maço de cigarros à ela, uma cena muito interessante que envolve também Blount. Mas isso fica para quando você ler o livro.

Depois desta cena e de Biff entregar o maço de cigarros para Mick, ela o coloca no bolso de seus shorts, depois de observar por um tempo John Singer, no meio do salão. E acho que houve algum tipo de erro na tradução ou mesmo na escrita. Não sei. Mas antes ele estava bebendo café, no início do capítulo, agora ele estava bebendo cerveja. Enfim. 

Blount que estava perto de Mick e Biff Brannon começa a olhar para Singer e comenta:

"Engraçado, eu tenho visto aquele sujeito nos meus senhos já faz umas três ou quatro noites. Ele não me deixa em paz. Não sei se você já reparou, mas ele parece que nunca fala nada."

Biff também, agora observando Singer, diz que também reparou isso e que achava aquilo estranho de fato, pois ele jamais falava nada. E é importante dizer que Biff JAMAIS comentava algo sobre seus clientes. 

Mick Kelly, enquanto estava saindo do restaurante, responde que para quem conhecia ele, aquilo não era estranho, e termina dizendo, antes de ir, que sua família, os Kellys, estavam hospedando John Singer havia três meses. 

Fim da primeira parte. Melhor terminar por aqui, porque acho que este capítulo, as próximas páginas merecem outra parte.

Importante ressaltar que todos as personagens, inclusive médico Benedict Copland (que será descrito posteriormente), encontram-se no bar/restaurante de Biff neste capítulo e todos já tiveram algum encontro. 

Esta última observação que Biff Brannon faz também é importante, pois todas as personagens vão estar em uma relação muito peculiar com o protagonista, que é John Singer, um surdo e mudo.  

Falta de comunicação e as pessoas preferindo falar de seu íntimo para John Singer? Pois ele parecia estar envolto, como se verá, em uma "aura" de compreensão e acolhimento que todos os outros, mesmo que ilusoriamente, não tinham ou talvez não percebiam que seus próximos possuíam. 

O flagelo da estreiteza de horizontes... como diz a tradutora.  Mas também o improvável. O "desvio" que os excluídos tinham. O aparentemente irracional... Carson sabia também disso. Viveu efetivamente isso? Não sei. Mas, deu voz à quem não tinha, né, minha filha? 


Vontade de guardar a Carson num potinho, né, minha filha? 



 








 

 

 

 

 
 
 

 

 

 





















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