Capítulo 1: John Singer - O caçador é um coração solitário, de Carson McCullers

Lula Carson Smith, mais conhecida como Carson McCullers, viveu entre 1917 e 1967. Escreveu contos e deixou no mundo um único, mas poderoso, romance: "O coração é um caçador solitário", que foi publicado em 1940.

Capa da edição utilizada

Eu tive um feliz encontro com esta obra em 2013. Lembro até hoje do dia em que entrei na livraria Nobel, na rua Treze de Maio, que fica no Centro da cidade. Era um dia quente de agosto (se a memória não me falha - tenho a sensação de que este não é o mês correto, mas minha memória insiste em retornar esta data, fiquemos com ela então), eu estava acompanhada de uma amiga do colégio, pois tínhamos acabado de sair da escola, o "Trajandiru" , como chamávamos na época (o nome real mesmo era "Trajano Camargo"). Na verdade, eu tinha encomendado este livro umas semanas antes daquele dia, pois a livraria não possuía nenhum exemplar desta obra, assim como não possuíam "Reparação", de Ian McEwan, o qual eu também tinha encomendado juntamente com esta obra da Carson. 

Eu estava contente de finalmente ir retirar a obra (a moça tinha me ligado no dia anterior avisando que eles tinham recebido uma remessa de livros, e que o livro da Carson estava incluso nessa remessa), afinal estava ansiosa para ler, pois a forma como conheci a existência dele, a forma como foi falado deste livro - hoje já nem lembro exatamente o que foi falado - chamou minha atenção. Foi indicado por uma personagem de um filme, na verdade, e uma filme que acho que na época já era pouco conhecido e continua até hoje longe do main-stream, o filme se chama "Uma Canção de Amor para Bobby Long". 

Enfim, peguei a encomenda, e paguei o restante. Pois na época, você pagava metade do preço do livro quando fazia a encomenda, e depois pagava a outra metade quando fosse retirar o livro. 

Encerrado o momento de lembranças e nostalgia daquela época em que as preocupações maiores era basicamente praticar clarinete, amizades e crushs, eu lembro de ter começado a ler já no caminho para a casa mesmo, dentro do ônibus. 

A história começa descrevendo o cotidiano de dois mudos que viviam em uma pequena cidade no "meio do sul profundo" estadunidense na época da Grande Depressão. Os dois amigos mudos eram totalmente diferentes um do outro. Spiros Antonapoulos, um grego "obeso e aéreo", tinha uma paixão muito grande por comer e beber. Era desleixado e, de certa forma, autocentrado. John Singer, contrastando com Antonapoulos, era alguém magro e alto, que prestava atenção, com seu olhar sempre "atento e inteligente", ao seu redor. 

Os dois viviam juntos, em um apartamento no segundo andar de um prédio comercial no centro daquela cidade. John Singer sempre procurava agradar Antonapoulos e fazer sua vontade, preocupando-se com seu bem estar. E isso mesmo nas coisas triviais, a cama mais confortável do apartamento, assim como a cadeira mais confortável pertenciam à Antonapoulos. O grego também não gostava de ser contrariado e "punia" seu amigo Singer, abstendo-se de falar com ele, caso Singer fosse contra sua vontade.

Fugindo aos dias "sempre iguais" dos quais Singer e Antonapoulos protagonizavam, sem mais amigos, e sempre com a mesma rotina, com poucas mudanças de cenários em seus dias entre trabalho e lar, chegou um dia em que o Antonapoulos passou muito mal. Após prescrição médica, Antonapoulos é proibido pelo médico de uma de sua principal paixão e práxis: beber. Singer seguiu a risca o que o médico prescreveu, vedando ao amigo tais hábitos. Graças à dedicação de John Singer, Antonapoulos pode ficar bem e voltar às suas tarefas normais novamente. Mas, por algum motivo, o relacionamento entre os dois não foi mais o mesmo.

Antonapoulos além de mudar seu comportamento com seu amigo, também começou a furtar, cometeu atentado ao puder, além de dar empurrões e cotoveladas ao ver pessoas na rua de quem não gostasse, mesmo que desconhecidas. Singer gastou toda sua poupança para tirar Antonapoulos da cadeia por diversas vezes, e se endividou para livrar o amigo.

O primo de Antonapoulos, que adotou o nome de Charles Parker, pois também de origem grega, decidiu, para não sujar sua imagem e de seus negócios na cidade, além do medo de ser responsabilizado pelas atitudes de seu primo, decidiu, com a ajuda de seu dinheiro e influência na cidade, enviá-lo para um asilo para loucos.

E, apesar dessa ser minha visão pessoal e meu sentimento lendo o livro, acho que é possível falar seguramente que esse é o início propriamente dos pilares fundamentais desta obra, que funciona como uma investigação psicológica dos sentimentos, das fraquezas, das aflições de Singer, e/mas também dos principais personagens que são apresentados, em capítulos individuais, posteriormente. 

John Singer sofre um abalo muito grande com a notícia, protesta a decisão do primo de Antonapoulos, mas sabe que não poderia reverter aquilo. Como havia uma semana ainda para se despedir de Antonapoulos, que iria para um asilo que ficava a mais de 300 km da cidade que residiam, Singer inicia uma semana frenética. Tenta contar tudo o que pode de sua vida para seu amigo Antonapoulos, suas mãos não tinham descanso nestes dias. Além disso, Singer arrumava os preparativos e a mala de Antonapoulos com o melhor do que os dois adquiriram nos 10 anos vivendo naquele apartamento. John Singer fez de tudo para que seu amigo se sentisse confortável e tivesse o melhor, além de tentar comunicar o máximo e, se possível, tudo que pudesse antes da partida do seu amigo - obviamente eu repito aqui essa tentativa de comunicação, pois esta também é uma questão que perpassa, apesar de contextos diferentes, o tema principal da obra, essa solidão de personagens que compartilham tantas angústias e medos e fraquezas, mas não conseguem se conectar, como se fossem ilhotas e houvesse algum tipo de muro invisível, uma barreira para não perceberem isso. 

O mais desesperador e triste de tudo, para mim como leitora: Antonapoulos não corresponder. Antonapoulos agia com indiferença. Quando Singer moldava as palavras freneticamente com suas mãos para contar de seus dias, de seus sentimentos e de sua vida, Antonapoulos parecia aéreo e com sono. Não parecia de fato prestar atenção ao que Singer dizia. 

Na despedida dos dois, na estação de trem, John Singer acompanhava com seu olhar todos os movimentos de seu amigo, enquanto Antonapoulos estava mais atento à sua comida do que em qualquer coisa que Singer tentou comunicar desesperadamente antes do trem efetivamente partir:

"[Antonapoulos] Só se virou para Singer pouco antes de o ônibus começar a se afastar do meio-fio, e o sorriso que tinha no rosto era muito brando e remoto - como se os dois já estivessem a quilômetros de distância um do outro."

Os dias que se seguem a esta partida de Antonapoulos, são descritas como "totalmente irreais" por Carson. Singer ficou desnorteado e parecia não ter paz. "Sonhos o inundavam enquanto ele ficava lá deitado, semi-adormecido." Para Singer, a vida antes de seu amigo, parecia algo que não existiu de verdade, ele tentava se lembrar de sua infância, de quando era mais novo, de quando ainda não havia conhecido Spiros Antonapoulos. Se lembrava apenas de uma coisa.

Singer se lembrou de que não nasceu mudo, ele tinha nascido surdo. Tinha ficado órfão ainda muito pequeno e ficou em uma instituição para surdos. Ele aprendeu a falar com um mão apenas, que é apontado como o método americano, e também com as duas mãos, que é o método europeu. Além de ter aprendido posteriormente a ler os movimentos dos lábios das pessoas que conversassem com ele e também aprendeu a falar. 

E é muito interessante a passagem que vem a seguir, lembro de ter comentado com minha irmã isso com ela. Peço desculpas, pois sou incapaz de descrever de uma forma satisfatória ou expressar o sentimento que tive, e acredito que as pessoas devam ter, ao ler essa passagem. Eu não sei dimensionar o porquê ela pode parecer importante, mas a considero importante também para interpretar o que vai ser falado posteriormente (embora a obra não coloque desafios interpretativos, como algumas obras me colocaram, cito, por exemplo, "O gigante enterrado", de Kazuo Ishiguro, que considero algumas passagens e mesmo o fim daquele livro algo difícil, precisei ler várias vezes o final e não acredito que tenha entendido até hoje). Leia o trecho, e se quiser comentar o que acha, ou falar que eu viajei mesmo, por favor, o faça. Segue:

"Na escola todos o achavam muito inteligente. Ele aprendia as lições mais rápido do que todos os outros alunos. Mas nunca conseguiu se acostumar a falar com os lábios. Não era natural para ele, e sua língua parecia uma baleia dentro da boca. Pela expressão vazia que via na cara das pessoas com quem falava dessa forma, ele imaginava que sua voz devia ser parecida com a de algum bicho ou que havia algo de repugnante na sua maneira de falar. Era doloroso para ele tentar falar com a boca, mas suas mãos estavam sempre prontas para moldar as palavras que queria dizer. Quando tinha vinte e dois anos, saiu de Chicago para morar naquela cidade do sul e logo depois conheceu Antonapoulos. Desde essa época nunca mais tinha falado com a boca, porque com o amigo isso não era necessário."

[assunto paralelo ao livro, pulo para a próxima chave que feche esta parte, caso queria apenas comentários do livro] 

Eu consigo me simpatizar e me reconhecer nesta questão do "irreal", ou "surreal", e sei que grande parte das pessoas podem ter essa sensação (posso estar errada também). Por exemplo, uma vez, quando trabalhei em um mercado perto de casa, uma das funcionárias estava junto comigo e outras pessoas, na hora do intervalo, que acontecia das 18 às 19 horas, pois trabalhávamos no turno das 14 às 22 horas, estava relatando para uma mulher que estava sentada ao meu lado, que ela, quando se separou de seu marido, com quem viveu quase 25 anos (salvo engano, não lembro exatamente, mas sei que era um número grande), foi como se alguém tirasse um membro do corpo dela, como se algo essencial ficasse ali faltando. Na época, lembrei do livro da Carson, dessa falta, que no caso de Singer causou esse irreal.

E sobre a parte de eu simpatizar e me reconhecer neste irreal propriamente, obviamente não posso comparar minha experiência com a da minha colega de trabalho. Pois não tive um relacionamento, e muito menos um longo desta forma, consigo imaginar, mas não sentir. Mas tive uma sensação parecida com uma desilusão, acho que mais precisamente com uma desilusão misturada com outros tantos problemas, como a perda de pessoas próximas a mim. 

Sei que isso não tem a ver diretamente com o livro, se quiser e estiver sem paciência, pule os próximos dois parágrafos. Mas quando contei disso para algumas pessoas, elas me falaram o seguinte: "você está imaginando, isso só está na sua mente". Recentemente, eu me deparei com um podcast que é intitulado como "It's Not Just In Your Head". Este podcast é feito por terapeutas, que, pelo que entendi, são também marxistas, e problematizam as questões sociais e atuais aliadas à saúde mental. Em especial em um episódio que estava ouvindo hoje, uma das "hosts" e criadoras deste podcast disse o seguinte: 

"We have to understand that we are bio-psychological characters. All of us. There are biochemical changes that occur with every emotion that we have and so we can always see a biochemical imbalance when someone is unhappy, but that doesn't mean that their problems are biological, because psychology affects biology intimately, and every biochemical change,, every psychological change has a concomitant biochemical change. (...) [But] the whole enterprise was to pigeonhole human beings to pretend their problems are not social, political [and] economic, but purely psychologically biochemical (...).                [Episódio #30 - Are DSM-5 Mental Disorders A Construct Of Capitalism?]

Evidentemente que ela estava falando sobre o sistema  e o problema do capitalismo aliado à indústria farmacêutica, e também de problemas que temos quando por traumas nos desconectamos do "self", de nós, e aí é que entra o papel da terapia, e não sempre de remédios, como se fosse algo puramente bioquímico. Importante ressaltar que ela não está falando que os remédios são totalmente inúteis e mal utilizados e fala de casos necessários, mas fala desse uso intenso, quando alguns problemas podem ser resolvidos de outra forma. Mas, acompanhe minha linha de pensamento (não desista ainda, por favor, pois pode parecer que as coisas não tenham absolutamente nada a ver, caso não tiver mesmo, terás o direito de me xingar), o que parece haver de fundo, e é isso o que a própria host do podcast citado dá a entender é que o que está em jogo propriamente é esta barreira de reconhecer que nossos pensamentos e a complexidade que eles têm - já que são a intersecção entre as dificuldades da convivência social, os problemas estruturais, os relacionamentos interpessoais, o desenvolvimento durante a infância, adolescência, o sistema em que vivemos, etc-, e seus efeitos concretos no nosso corpo, na materialidade do que somos. O que há é essa criação de realidade que fazemos e projetamos, a forma como sentimos e vivemos no mundo, parece haver esta "recursividade" entre o que comumente pensamos apenas como subjetivo, que seriam nossos pensamentos. Lembro daquela frase que atribuem à Clarice Lispector: "Pensar é ato, sentir é fato". Esse irreal que sentimos. Já senti. Estou apenas querendo racionalizar. Perdão a digressão. Continuemos.

[fim do assunto paralelo ao livro] 

O capítulo 1 termina com estes meses que "foram passando dessa maneira vazia e sonâmbula" para Singer. Ele, então, por uma mudança repentina em sua energia, já que não conseguia mais ficar parado naquele apartamento, começou a sair todas as noites, a andar pela cidade, alugou um quarto em uma pensão perto do centro, e se mudou para lá. 

E é aí que John Singer se encontrará com os demais personagens do romance. O primeiro que é encontra é o dono do restaurante em que ele passa a fazer suas refeições todos os dias, que inclusive é o protagonista do capítulo seguinte. Que falarei em outro post.

O capítulo termina falando de como Singer andava todas as noites pelas ruas da cidades, e de como veio posteriormente a este período de agitação e inquietação, um período de exaustão. Mesmo assim, Singer continuava a andar pelas ruas da cidade, não importava o se estivesse frio ou chovendo. Se me permite, mais um vez colocando aqui um trecho com a escrita da Carson (no caso, com a tradução da Sonia Moreira, que merece a menção aqui), exatamente com o parágrafo final do capítulo: 

"A agitação de Singer aos poucos cedeu lugar à exaustão e ele começou a transmitir uma impressão de profunda calma. Em seu rosto surgiu aquela expressão de paz contemplativa que se costuma encontrar com mais frequência nos rostos dos muito sofridos ou dos muito sábios. Mas, mesmo assim, continuou a andar pelas ruas da cidade, sempre sozinho e em silêncio."

Talvez este primeiro capítulo não tenha convencido que a obra de Carson valha a pena de fato o tempo, não sei como reagiria ou qual o seu gosto literário, mas este primeiro capítulo não é nada do que de fato está por vir. 

Meu resumo e comentários também não sei se são as melhores fontes, reconheço que ainda não sei expressar com propriedade o quão este livro é importante. De como ele me tocou. Eu estou escrevendo simplesmente para tentar. Espero que decida ler o livro e que ele ele te toque, assim como me tocou. 

Obrigada por ler, se chegou até aqui. 




 

 

 







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