ANÁLISE SOCIAL E LEGAL DOS PRINCIPAIS ASPECTOS DA CRISE HUMANITÁRIA NA VENEZUELA E A POSIÇÃO BRASILEIRA


Victor Hugo, um dos grandes dramaturgos da literatura mundial, incluiu no capítulo inicial do seu segundo volume da magnus opus- “Os miseráveis”- a seguinte sentença:

                                                                                          “(...) surgem certos fatos que se fazem reconhecer e, por sua vez,                                                                                                 batem à porta. Esses fatos saíram das revoluções e das guerras,                                                                                                      existem, vivem, têm direito de instalar-se na sociedade, e ali se                                                                                                   instalam; e, a maior parte do tempo, os fatos são segundos-sargentos                                                                                            de cavalaria e soldados que não têm outra coisa a fazer senão                                                                                                        preparar o alojamento para os princípios.”

 Esta passagem sintetiza, de certa forma, a realidade do mundo social de qualquer época e lugar: a construção através de paradigmas (à revelia de seus autores/defensores) da sociedade (da expectativa desta quanto ao comportamento de seus membros).

Toda construção possui sua dinâmica e lógica, inerentemente: há caminhos e fases de construção, por isso a importância de se olhar os antecedentes, os registros deixados- a História. Neste sentido, o objeto específico de análise deste trabalho são os refugiados e imigrantes na fronteira norte do Brasil com a Venezuela. O tema é, evidentemente, complexo, e estar atento às diversas questões sociais que perpassam essa realidade, além de analisar o arcabouço jurídico é salutar para esclarecer princípios já construídos (e que tentam se consolidar) no passado: os direitos humanos.

Considerando os tratados internacionais (nomeadamente, Declaração dos Direitos Humanos de 1948, Estatuto dos Refugiados de 1951, Protocolo relativo à Convenção que cria o Estatuto dos Refugiados em 1951, e o Declaração de Cartagena de 1984), e, sobretudo (para o recorte feito quanto a pesquisa e métodos de análise da questão colocada dos refugiados venezuelanos): os decretos nacionais que promulgaram (confirmaram estes tratados¹); as leis nacionais que regulamentam os tratados de forma mais específica (Lei 9.474/1997, a recente Lei de Migração de 2017- Lei 13.445- e a Lei 13.684/2018- esta motivada especialmente pela situação de colapso na região noroeste do país e para enfrentar os impedimentos jurídicos quanto à caracterização dos venezuelanos que chegam ao Brasil para fugir da crise de seu país, restritas e objeto de controvérsias, sem citar as inflamadas sentenças e perspectivas da opinião pública²); e, ainda, as normas constitucionais referentes ao artigo primeiro, inciso III (dignidade da pessoa humana), e, principalmente, o artigo 4º da Constituição, em dispõe sobre os princípios que a República Federativa do Brasil rege suas ações perante a comunidade internacional (sendo estes: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não intervenção; Vigualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político), buscou-se analisar a responsabilidade e vinculação do governo brasileiro em relação à proteção e garantias sociais quanto à esses refugiados especificamente, sem deixar de lado as questões de discussões sociais (evidente pela sua importância, muitas vezes baseando e/ou confrontando o direito- que varia, nestes casos, desde obrigação legal à mera formalidade para camuflar a realidade e pensamentos hegemônicos da população, além de seus operadores “imparciais”), sendo que estas vão desde o fenômeno da globalização, ao do entendimento da história peculiar de Roraima (considerando ainda a diversidade territorial, a desigualdade na distribuição de infraestrutura, orçamento, população e serviços públicos no Brasil³), ao histórico econômico venezuelano (antes um dos países mais ricos da América Latina), e, para sintetizar as citações, a discussão sobre a Venezuela como regime ditatorial (talvez praticamente perto de sanar-se frente à informação recente quanto ao programa do “cartão da pátria’- em que o governo venezuelano baseia-se na tecnologia desenvolvida na China para controle de seus cidadãos- serviços de saúde, assim como outros serviços, além, de certa forma, do exercício de atos da vida civil, girariam em torno deste controle/monopólio estatal dos dados de seus nacionais4 - ao invés de ter como prioridade a resolução da profunda crise econômica, sendo que a inflação alcançou impressionantes 800.000%5).

Colocando de forma mais concreta e sintética: o estado de Roraima (principalmente as cidades de Pacaraima e a capital Boa Vista), receberam mais de 60.000 venezuelanos (ora colocados como refugiados, ora como imigrantes- esta é uma das discussões quanto à caracterização destas pessoas quanto à índices socioeconômicos6 , considerando a leitura literal da lei, além das discussões no âmbito ideológico) nos últimos 2 anos principalmente. Este contingente acabou por colapsar os precários sistemas de saúde, sistema educacional, e causar uma verdadeira situação de “bomba relógio” quanto à segurança pública*. A situação chegou ao ponto de criar embates no nível institucional do governo7 , para além da questão orçamentária (colocada como urgente frente à necessidade de complementação e ampliação de recursos, infraestrutura e profissionais no estado roraimense). A questão principal que acabou por influenciar um longo debate nacional foi a legitimidade de aceitar-se pessoas estrangeiras, mesmo não havendo condições apropriadas, e esta tutela aos venezuelanos à revelia da própria crise brasileira, afetando, de certa forma, o cidadão nacional8 . Nesta situação, há uma amplitude enorme de players políticos e variáveis que apenas superficialmente torna-se impossível sua compreensão, então não se aprofundará esta questão neste trabalho, o exposto é para apenas basear e contextualizar a importância mas difícil implementação e aplicação das leis, já que constitucionalmente e pelas leis que regulam tratados e convenções internacionais, além do paradoxo sistema político de Maduro, que cada vez mais, vem criando disputas e revelando seu caráter (ao menos midiaticamente e externamente) autoritário e, em muitas ocasiões, totalitário.

A análise ampliada do fluxo migratório venezuelano para outros países da América Latina ajuda a esclarecer o equívoco brasileiro quanto ao aspecto majoritariamente moral/social sobre a negativa estabelecida em leis (apesar desta ser uma análise de um estado com maior recurso que Roraima e distante deste- São Paulo, o que levantaria problemáticas quanto ao efeito real da crise e, portanto, validade de análise quanto a essa “repulsa” específica): mais de 2.3 milhões de pessoas deixaram a Venezuela desde que a crise piorou no país (a partir de 2015), segundo dados da Organização Internacional de Migração (OIM). Matéria da BBC à este respeito, discorre:

                                                                     “estima-se que pelo menos 50 mil deles, ou 2% tenham se fixado                                                                                                  apenas  no Brasil, até abril de 2018, um aumento de 1000% em relação                                                                                        a 2015. O número leva em conta pedidos de asilo e residência.” 


Além disso, em uma matéria do jornal Estado de Minas, de julho deste ano, foram apontados diversos dados divulgados pelo Comitê Federal de Assistência Emergencial (criado pela medida provisória 820/2018, depois transformada na lei 13.684/2018, e regulamentado pelo decreto 9.286/2018), dando destaque para o número de que 54% dos venezuelanos que cruzaram a fronteira para o Brasil, deixaram este para retornar ou para migrar para outro lugar.9

Deslocando-se destas considerações e apresentações, trazendo à atenção às legislações (e os compromissos positivados nestas) em que o Brasil adota sua posição, temos: a Lei nº 9.474/1997, tem-se, in verbis: “Art. 5º O refugiado gozará de direitos e estará sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil, ao disposto nesta Lei, na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967(...)”; a nova Lei de Migração (nº 13.445/2017), em que coloca-se, dentre outros aspectos, os princípios da política migratório, que dá-se destaque para o artigo 3º, inciso XV, ipsis litteris: “ cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante”, além do parágrafo 1º:do artigo supracitado (“§ 1º- Os direitos e garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória (...)”); e, principalmente, a Lei motivada pela situação e dificuldades sociais e jurídicas dos venezuelanos no Brasil, a Lei 13.684/2018 que “dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária (...)”.

Selecionados os considerados como principais pontos das pesquisas realizadas para embasamento de posição contrária ou a favor, consideramos, por conclusão, e por depreensão da realidade de fato (de necessidade de proteção, além da responsabilidade brasileira), que este embate e opiniões não transcendem, e não tem a legitimidade para transcender, o direito construído historicamente e por lutas e conquistas passadas (e não cessão voluntária, ou de favor).

Diante disso, citamos ainda o parágrafo único do artigo 4º da Lei máxima brasileira: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Além disso, consoantes aos princípios, fundamentos e objetivos desta República, a negativa ao acolhimento humanitário (por mais que haja ressalvas de recursos- que também mostram certa ineficiência e falta de habilidade de gestão e distribuição do governo brasileiro**), é inconstitucional e não passível portanto de aplicabilidade.

Mais ainda: Maria Gorete Marques de Jesus em seu trabalho para obtenção de título de doutorado utiliza de uma verdade muitas vezes posta de lado, para não prejudicar certas fragilidades da certeza institucional e camuflar a verdade de que o direito serve à sociedade, e não o contrário. Embora não seja o conteúdo de sua tese, ela parte do pressuposto de inversão do brocárdio quod non est in actis non est in mundo (“o que não está nos autos, não está no mundo”)10 . A grande questão aqui se trata dos efeitos para além de conformidades jurídicas: conforme o contextualizado há ainda a realidade que os números ou palavras não nos passam (estima-se que 64% dos venezuelanos tenham perdido em média 11 kg no ano passado11 ; há sorteios e rifas de alimentos, além de procura em lixo por alimento12 ; as trocas de serviços por comida são frequentes13 ; a saúde precarizada14 e repressão de protestos que levaram à morte centenas de pessoas15 ); há a influência de uma crise em nossa forma de pensar determinadas ideologias; influência nas eleições brasileiras; impactos na visão internacional acerca do Brasil: o maior país da América do Sul se mostra incompetente em medir ou buscar soluções efetivas, de poder de influência regional; além das prováveis impactos econômicos no país (que já se faz presente, de certa forma, com a presença de cerca de 54.000 venezuelanos em Roraima16 .

¹ O decreto nº 50.215 de 28 de janeiro de 1961 promulga a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluída em Genebra, em 28 de julho de 1951; ²https://www.cartacapital.com.br/revista/1018/ataques-a-venezuelanos-em-roraima-mostram-como-axenofobia-se-alimenta (Além de relatar as agressões por parte da população brasileira à venezuelanos, texto da Carta Capital oferece importantes dados de contextualização da situação da Venezuela e políticos brasileiros). Acesso no dia 24/11/2018 
³https://noticias.r7.com/jornal-da-record-news/videos/prefeita-de-boa-vista-rr-fala-sobre-situacao-dosvenezuelanos-na-cidade-09082018 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/16/politica/1518736071_492585.html 
4 https://www.reuters.com/investigates/special-report/venezuela-zte/ (acessado no dia 24/11/2018) 5https://www.forbes.com/sites/garthfriesen/2018/08/07/the-path-to-hyperinflation-what-happened-to-ve nezuela/#7bdfa52b15e4 https://g1.globo.com/economia/noticia/fmi-projeta-inflacao-de-1000000-na-venezuela-para-2018.ghtm l https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/07/inflacao-na-venezuela-vai-a-1000000-neste-ano-prevefmi.shtml https://tradingeconomics.com/venezuela/inflation-cpi https://www.theguardian.com/world/2018/aug/20/venezuela-bolivars-hyperinflation-banknotes (nesta reportagem, o jornal inglês The guardian, exemplifica com exemplos históricos a hiperinflação, além de explicar seu conceito e formas de controle. O interesse desta matéria em particular, é a comparação feita entre a quantidade de dinheiro que é necessária para comprar pequenas porções de produtos que eram para ser comuns na Venezuela (por exemplo, uma galinha custaria o equivalente a mais de 14 mil bolívares- a reportagem compara o peso do dinheiro físico necessário com quilos de açúcar, neste caso, seria necessário 14.6kg de açucar para comprar uma galinha) Links desta nota acessados no dia 24/11/2018 
6 Simões, Gustavo da Frota. Perfil Sociodemográfico e Laboral da imigração venezuelana no Brasil. Editora CRV, Curitiba, 2017 
7https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,decreto-de-roraima-que-restringe-servicos-a-migrantes-e-i nconstitucional-diz-pgr,70002436302 (acesso no dia 24/11/2018) 
8 Na verdade, diz das crises brasileiras, no plural, visto a profunda crise institucional, juntamente com as crises política, econômica e social.
 9https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/54-dos-venezuelanos-que-entraram-no-brasil-por-rr-desde-20 17-ja-deixaram-o-pais-diz-ministro.ghtml https://www1.folha.uol.com.br/amp/mundo/2018/07/mais-da-metade-dos-venezuelanos-que-cruzaram -fronteira-deixaram-pais.shtml https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/07/17/interna_politica,974037/amp.html ( links acessados no dia 24/11/2018) 
10 Jesus, Maria Gorete Marques de. “O que não está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas/ Maria Gorete Marques de Jesus; orientador: Sérgio Adorno- São Paulo, 2016. 275 f. 11https://g1.globo.com/google/amp/mundo/noticia/pobreza-atinge-87-venezuelanos-diz-estudo.ghtml https://exame.abril.com.br/mundo/64-dos-venezuelanos-perderam-11kg-por-falta-de-alimentos/amp/ https://m.oglobo.globo.com/mundo/peso-medio-dos-venezuelanos-cai-11-kg-em-um-ano-por-falta-dealimentos-22420915?versao=amp https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/22/internacional/1519277784_904681.amp.html https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/dieta-maduro-venezuelanos-estao-perdendo-peso-porquenao-tem-o-que-comer-2kvauv0lp5vo8as6d1nwfwad6/ampgp/ 12https://www.breitbart.com/national-security/2017/06/19/inside-venezuela-starved-families-scavenge-f ood-garbage-covered-streets/ (acessado em 24/11/2018) 
13 - https://www.reuters.com/article/us-venezuela-barter-idUSKBN1JT1UM (acesso no dia 24/11/2018) Nesta matéria a gencia Reuters narra uma nova forma de moeda na Venezuela: a troca. Cita entradas em locais, trocas por serviços e outros materiais por alimentos. 14https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/18/internacional/1466264088_138585.html https://oglobo.globo.com/mundo/com-falta-de-medicamentos-venezuelanos-buscam-remedios-no-ext erior-21185092 (endereços eletrônicos acessados no dia 24/11/2018) 15https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/07/1903169-numero-de-mortos-em-onda-de-protestos-n a-venezuela-chega-a-103.shtml https://oglobo.globo.com/mundo/mortos-superam-100-em-tres-meses-de-protestos-na-venezuela-216 15321(acessado no dia 24/11/2018) 16http://roraimaemtempo.com/noticias-locais/governo-de-rr-deixou-de-usar-r-58-4-milhoes-que-ja-esta vam-destinados-a-saude-em-2017,280463.jhtml Nesta reportagem do jornal roraimense Em tempo, é colocada em questão a pesquisa sobre população feita pelo IBGE e divulgada no meio do ano. O aumento da população de Roraima (primeiro estado a considerar refugiados venezuelanos na contagem) foi de 54 mil habitantes. * Trecho selecionado da matéria do Estadão baseada nas investigações do jornal americano The New York Times em 2017: “As crianças chegam em condições muito graves de desnutrição”, disse o médico Huníades Urbina Medina, presidente da Sociedade Venezuelana de Pediatria. De acordo com ele, os médicos venezuelanos têm se deparado com casos de desnutrição semelhantes aos encontrados em campos de refugiados.” (https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,crise-se-agrava-e-criancas-morrem-de-fome-na-ve nezuela,70002123572 - link acessado no dia 24/11/2018)

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