O gigante enterrado de Kazuo Ishiguro

Os últimos acontecimentos de radicalização de intolerância, violências que acontecem no estado vizinho, no país vizinho, no país ao norte, em tantos lugares até chegar bem próximo da porta da nossa casa faz pensar- única possibilidade por hora.

O gigante enterrado de Kazuo Ishiguro não traz respostas diretas e nem mesmo diz respeito, em termos de assuntos centrais, a essa questão de violências cotidianas. Na verdade, trata de temas um pouco mais remotos e, numa aura de reflexões, em alguns trechos até mesmo repetitivas (o autor não parece confiar muito na memória do leitor em algumas vezes, por repetir coisas já ditas, mas talvez faça parte dessa "aura reflexiva"), conduz o interlocutor através de questões como memória e sentimentos coletivos: traumas, conflitos, vingança, violência.

O cenário, evidentemente, não é esse país tropical e difícil de compreender, mas sim um ambiente em que todos já estão acostumados, já que todos consomem e absorvem o que os anglo saxões e bretões faziam e fazem: filmes, livros, pensamentos, opiniões, e, por extensão, sua geografia. O local: Inglaterra.

Utilizando recursos do chamado "realismo mágico", o autor molda a história nos tempos "pós-Arthur", em um Inglaterra rural, cheia de pântanos e charcos, e coberta por uma névoa estranha, que causa nos moradores das terras bretanhas um terrível (e, paradoxalmente, amortecedor) efeito: a perda de lembranças passadas. Mas o efeito não é total. As lacunas da memória causam incômodo, o presente não é totalmente compreensível, falta algo: o passado tirado pelos feitiços de Merlin.

O livro se inicia com este mote: uma viagem de Beatrice e Axl ao lar de seu filho que não lembram o nome, nem a face, nem exatamente o motivo de viverem distante dele, apenas uma vaga lembrança de uma aldeia, de uma enseada, de uma ilha.

A partir daí, nas quatro partes em que são divididas, a história de Ishiguro segue com pedaços de lembranças, o caminho percorrido, as pessoas que encontram pelo caminho (especialmente Wistan, Edwin, Gawain, que seguem na narrativa até o seu desfecho), e cheio de simbolismo quanto as consequências do passado e conhecimento sobre ele ( a parte IV é o ápice, pois diferente da maior parte da história não há explicações, há apenas algo muito vago, trechos aparentemente desconexos...).

Seguindo uma linha do que faz em "Não me abandone jamais", a "fala mansa", educada e sutil (ou a menos a sensação que a escrita de Ishiguro passa) tem um efeito muito interessante: apesar de suas narrativas não terem nenhum acontecimento extraordinário (por mais que em O gigante enterrado se utilize do supracitado realismo fantástico), ou algo que realmente prenda de forma intensa o leitor, há uma certa atração para saber o que vem depois.

A grande questão é que o que vem depois é o nada. O final é como se ele tivesse parado de escrever, não dá para saber o que foi dito exatamente. Você volta lê novamente, e aquele "final' fica na sua mente, e você passa a duvidar sobre sua capacidade de interpretação... Afinal, o que, exatamente, aquilo quis dizer?

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Planejei fazer uma longa e detalhada análise de Kazuo; pesquisar, colocar trechos, ver entrevistas. Mas acho que (apesar de minha intenção sobre conhecer mais Kazuo esteja fortemente intacta) não cabe aqui senão a indicação de um bom livro, que merece e vale a pena o tempo cedido.

Apesar de temas críticos, tensos, assuntos que tocam sentimentos não tão agradáveis, Kazuo tem sutileza, leveza (não confundir com um mundo perfeito, com arco-íris e bolhas de sabão) a seu favor, e traz o leitor de volta. Como diz uma crítica não totalmente identificada (uma das frases impressas na contra capa da edição que possua): "Suspeito que Ishiguro seja um sábio ; sua visão excede, de forma sútil e educada, a visão das pessoas".

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