As Veias Abertas da América Latina- parte 1- Resumo e comentários
O livro entregue por Hugo Chávez à Barack Obama durante a “Cúpula das Nações”, ocorrida em 2009, não podia ser mais representativo de uma certa vontade e paixão que movimentos e pessoas nutrem em relação a mudança da realidade, nesse caso em especial a realidade das veias abertas da Latino América. E abertas por diversas razões, desde a ingenuidade e boa vontade nativa (dos indígenas americanos), até poucas pessoas (futura oligarquia), geralmente (como conta a história), estrangeiros que veem nestas terras a oportunidade de poder e riqueza e, dentre os outros motivos, cultivam suas ações, contrárias muitas vezes aos seus ideais, por considerarem este um mundo à parte, um mundo abaixo da realidade e, portanto, sem consequências importantes para suas terras natais e seu destino individual. Embora, a história esteja longe de ser simples e clara, em alguns momentos há sim um certo consenso, mesmo que seja uma “verdade factual provisória”, que se tem através de alguns métodos e uma série de acumulações e transformações do conhecimento, além da inevitavelmente pujante experiência. Eis o porquê (um dos possíveis porquês) do simbolismo da entrega do livro de Galeano, que dentre outras coisas, coloca vida em dados, números e acontecimentos, traz à tona a miséria disseminada propositalmente em detrimento de luxos fugazes e extremamente concentrados em países que se consolidaram a base de fogo e sangue: o desejo de que se conheça o passado para mudar o hoje, que é consequência passada.
Mais de 45 anos se passaram da publicação de umas das obras mais citadas sobre América Latina, e, sem dúvidas, quando se fala o nome do autor da obra, o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Mas a obra continua se confundindo com o autor, ocupando muitas vezes, mesmo que involuntariamente, uma característica metonímica, mesmo que apenas interiormente, no âmbito do pensar individual. Evidente que isso se passa para os que conhecem minimamente o valor simbólico dessa obra, além do valor real que ela pode assumir, mesmo pertencente a uma era que não existe mais, mas presente, por constituir suas consequências: a guerra fria por qual passava o mundo, e, colocando em uma outra perspectiva, mas ainda relacionada, pelos antecedentes de origem da Milnet e posteriormente Arpanet, a da era antes da Internet, que, sem entrar no mérito, mudou o rumo e as relações, e evidentemente por extensão a ciência histórica. Nesse sentido, quanto um dos possíveis valores reais de As veias abertas da América Latina traduz-se em um certo consenso em diversos âmbitos e que Eduardo Galeano traz à tona introdutoriamente: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, anuncia o que será”.
Dividido em primeira e segunda partes, cada uma contando com seções e subseções organizadas conforme o tema, são apresentadas cronologicamente, adotando como ponto de partida a colonização europeia nas Américas.
Nesse sentido, a primeira parte concentra-se, embora não rigidamente, pois há frequentemente colocação quanto a realidade vigente/data vigente (no caso, início da década de 1970 sendo que deve-se considerar que as seções tomam por fio condutor não propriamente as informações ou períodos históricos em si, mas o simbolismo que possuem, e isso justifica algumas repetições de informações, principalmente a partir da seção denominada “as fontes subterrâneas do poder”, que retomam dados de tópicos anteriores à ela), da colonização à época de industrialização e do petróleo, há certa alternância entre os assuntos inerentemente, e isso por dois motivos principais: há correlação e pela estrutura da obra, essencialmente dissertativa.
Intitulada como “A pobreza do homem como resultado da riqueza da terra”, a primeira parte é antecedida por uma pequena introdução, nomeada “Cento e vinte milhões de crianças no centro da tormenta” e que traz à tona o mote do que configura essa grande tese de Galeano, com o objetivo expresso, primeiramente no título da obra (embora claramente partidário, um dos motivos para que o próprio autor, em 2014, declara-se que não leria sua magnum opus outra vez por ser a “prosa da esquerda tradicional é chatíssima”¹, além falar sobre a obra como uma fase superada e algumas justificativas): o espólio sofrido pela América Latina, vítima da cobiça imperialista (um dos enviados de Montezuma ao encontro de Fernão Cortez e sua comitiva, que avançavam para Tenochtitlán, para saldo-los com ouro e outros presentes, descreve desejava tais materiais “como porcos famintos”²) como consequência de suas riquezas. E conjuntamente a esse mote, as palavras soberania, capitalismo, imperialismo, nacionalismo, em várias passagens do livro, estão acopladas,porém não apenas, como pode pensar alguém desavisado, para reforçar uma opção de discrição e perspectiva relacionadas apenas a experiência individual, mas sim relacionadas a dados, estudos, matérias jornalísticas e outras fontes que são frequentes nos rodapés das páginas (apesar de haver uma série de informações sem citações expressas de fonte), além de alguns dados um tanto “curiosos” (relacionados como o título aponta, aos fatos e acontecimentos injustos para com as crianças latino americanas, que incluem níveis elevados de mortalidade e assuntos correlatos) se não fossem irracionais e desrespeitosos em aspectos variados mas que convergem para a questão da autonomia de escolha e redução de certos horizontes possíveis tanto individualmente como coletivamente: a esterilidade de mulheres na região amazônica, em regiões com elementos estratégicos para as grandes potências (como o ferro e manganês) sob a justificativa (malthusiana) de que a pobreza é resultado de determinada quantidade de filhos, e alegando o crescimento da população como fator preocupante em uma a região amazônica foi e ainda é, um “deserto” demográfico³. Embora quase sensacionalistas e com certa quantidade de humor negro, como diz o próprio Galeano, as frases “na América Latina é mais higiênico e eficaz matar os guerrilheiros nos úteros do que nas serras ou nas ruas” e “combata a pobreza, mate um mendigo!”(frase retirada de um muro da cidade de La Paz) vão fazendo mais e mais sentido à medida em que se avança a leitura do livro.
Iniciando propriamente o conteúdo da parte 1, o tema que conduz as informações e os argumentos, diz respeito mineração (seção nomeada de “Febre do ouro, febre da prata”) nas colônias ibéricas, com especial atenção para as minas de prata de Potosí e “a Potosí do ouro” no Brasil (a Vila Rica/Ouro Preto), embora esteja distante de se “reduzir” a “apenas” esse tema e a essas localidades. Uma outra característica que permeia a obra de Galeano é sua amplitude de temas e correlações que, independente de discussões quanto a ideologia, e comentários que parecem marcar certo “estilo” que indicam serem escritos por jornalistas (vide 1808,1822,1889 de Laurentino Gomes e Saga Brasileira de Miriam Leitão), como comentários do mau gosto das elites que construíram o Teatro Amazonas no auge do ciclo da borracha, ou sobre a descrição física de Chica da Silva, ambas feitas posteriormente, e que resguardam mais pequenos “argumentos” para descaracterizar/desclassificar o que o autor associa as estruturas de opressão da maioria.
Traçando um panorama desde a descoberta de Potosí e outras minas, como Zacatecas, e em especial posteriormente em Ouro Preto, Galeano contextualiza acontecimentos e elenca motivos, sobretudo, econômicos4 que determinam toda a trajetória dos colonos mineradores (exploradores, já que subjugaram os “inferiores” índios para trabalharem dia e noite na produção de riqueza para as metrópoles e disseminação da miséria e expropriação de terras), além de expor alguns relatos, que incluem determinadas experiências pessoais, de pessoas que viveram após o auge da mineração sobre o local, a história e a vida depois do frenesi e paradoxal processo de produção de riquezas e desenvolvimento da localidade (os lucros foram para os centros de poder e comando de operações nas colônias, e nunca mais voltaram para os que doaram suas forças, vida e sangue para isso).
Embora algumas afirmações possam ser, até certo ponto, previsíveis, há certas informações não tão “explícitas” como a prata da colonização servir não às metrópoles ibéricas, mas sim aos credores dessas metrópoles, permitindo acumulação de capitais em solo, majoritariamente britânico, levando ainda a outras consequências e explicando parte da história de desenvolvimento da Inglaterra como uma das grandes potências econômicas nos séculos seguintes “Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até mesmo dizer que o tornaram possível”5.
Retomando a questão do “valor real” para além do valor simbólico, há contribuições para a ‘frágil memória coletiva’ quanto a retomar um conteúdo comum nos cursos de história, ainda no ensino médio: a Igreja católica como instituição de validação de determinadas ações. A Igreja foi uma importante mediadora nas relações de produção, principalmente na Europa (quanto a proibição e contradição entre nobreza e produção manufatureira na Península Ibérica), e regime de trabalho na América (escravização da população nativa, submetida “violência e doença, pontas de lança da civilização”6).
Embora seja sempre colocada a questão econômica e suas relações, agentes e condicionantes, presentes majoritariamente em todas as partes do livro, nessa primeira há mais uma característica própria (além do tempo histórico coberto; da colonização a revolução industrial, como o supracitado), que não está presente com destaque nas outras seções como nessa, que é a situação dos povos indígenas. Dentre as várias faces exploradas por Galeano, a que chama a atenção são as palavras ditas sob o subtítulo “A semana santa dos índios termina sem ressurreição”. Embora a citação a seguir esteja localizada anteriormente a essa parte em específico, expressa os resquícios da situação indígena que será narrada.
No século XVIII, os índios, os sobreviventes, asseguravam a vida cômoda de muitas gerações vindouras. Como os deuses vencidos persistiam em suas memórias, não faltavam santos álibis para o aproveitamento de sua mão de obra pelos vencedores: os índios eram pagãos, não mereciam outra vida. Tempos passados? Em setembro de 1957, 420 anos depois da Bula do papa Paulo III, a Suprema Corte de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juízes do país que “os índios são tão seres humanos quanto os outros habitantes da república (...)”. E o Centro de Estudos Antropológicos da Universidade Católica de Assunção, mais tarde, realizou uma pesquisa reveladora na capital e no interior: de cada dez paraguaios, oito acreditam que “os índios são como animais”. Em Caaguazú, no alto Paraná e no Chaco, os índios são caçados como feras, vendidos a preços vis e explorados em regime de virtual escravidão. No entanto, quase todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções, poemas e discursos em homenagem à “alma guarani”. (pág. 53)
Galeano discorre sobre a situação indígena, inicialmente explicando sobre os pongos, “ìndios dedicados ao serviço doméstico”7, que viviam como semelhantes aos cachorros, e se curvavam ao falar como pessoas de pele branca; cita a pouca oferta e alta demanda por cavalos e animais que pudessem carregar as “bagagens dos conquistadores”, e , assim, o uso de indígenas para esse trabalho; passa pelas minas, com a “primeira doença profissional da América”, a neumoconiosis, “quando os mineiros bolivianos completam 35 anos de idade seus pulmões já se negam a continuar trabalhando: o implacável pó de sílica impregna a pele do mineiro, racha-lhe o rosto e as mãos, aniquila-lhe os sentidos do olfato e sabor, e conquista-lhe os pulmões, os endurece e os mata.”; fala sobre a coca, dada aos índios para amortecer os sentidos e o cansaço, com a participação e conivência da Igreja, que cobrava imposto sobre a droga; a caça e morte de índios no Uruguai e na Patagônia, em favor de latifundiários; sobre os mais de 100 mil escravos indígenas nas plantações de sisal na península de Yucatán… E sobre o estigma sobre o indígena, que no final, se entregava a “vícios maléficos” como a coca e a cachaça (uso incentivado pelos próprios europeus, em busca sempre de lucro), Galeano então declara sobre a realidade de impossibilidade frente ao insistente intrusos das terras do que agora são refugiados os verdadeiros donos: “ São as estéreis vinganças dos condenados”.
“Vila Rica de Ouro Preto: a Potosí de ouro” e “Contribuição do ouro do Brasil ao progresso da Inglaterra” são as partes finais do tema “Febre de ouro, febre de prata” (aqui como em outras partes, o autor mostra bastante domínio sobre a história brasileira, muitas coisas que nem mesmo os brasileiros prestam atenção, ou têm acesso, independente do motivo; há citações de Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Aleijadinho, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Chica da Silva, entre outros, sendo a principal, pelas relações estabelecidas com os recursos naturais e concessões a multinacionais, Jânio Quadros, o conhecido presidente anterior a ditadura que ninguém sabe o porquê da renúncia e considera-o como uma pessoa esquisita, figura sempre pintada nas escolas, cursinhos e até entre pessoas do âmbito acadêmico brasileiro 8, o que pode configurar e consolidar a validade e confiabilidade que se pode ter dessa obra).
“Aqui o ouro era mato”, diz agora o mendigo, com o olhar planando sobre as torres das igrejas, “havia ouro pelos caminhos, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos de idade e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira vizinha de Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, parada no tempo. (página. 62)
Repetindo algumas estruturas de testemunhos de pessoas que vivem em cidades que outrora foram grandes centros econômicos e que possuíam grande atratividade, como no caso do boom do ouro, em Minas Gerais, em que a população em um século multiplicou-se 11 vezes. A explosão demográfica e urbana, agora cede lugar ao silêncio e memória dos moradores do que um dia foi a rica região, hoje esvaziada tanto quanto a seus recursos minerais como humanos.
Galeano reforça isso em diversas passagens, citando os monumentos como testemunhas do tempo passado, as obras de arte e igrejas, e as obras do “artista mais talentoso da história do Brasil”, Antônio Francisco de Lisboa, o “Aleijadinho”.
Além disso, é explorado as relações da mineração com o progresso da Inglaterra. É conhecido de todos que algum dia estudaram história do Brasil, mesmo que superficialmente, a “amizade” e proximidade inglesa de Portugal. Isso porque, por influência da Igreja e pelos hábitos ‘imediatistas’/de comodidade da nobreza portuguesa, muito mais preocupada com o materialismo relativo ao status “improdutivo” do que alguma mudança, modernização ou pensamento na economia, de fato (“quem se dedicasse a uma atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia”9), dava vazão a interesses de mercado consumidor e, em nível de comercialização, aumentava lucros advindos de empréstimos,e nos tempos da mineração garantiu o ouro à Inglaterra, assim contribuindo para consolidação de seu poder imperialista (“Segundo as fontes britânicas, a entrada de ouro brasileiro alcançava 50 mil libras por semana em alguns períodos. Sem esta tremenda acumulação de reservas metálicas, A Inglaterra não teria podido enfrentar, posteriormente Napoleão”10).
O tema abordado sobre a troca de matérias primas e produtos manufaturados entre países, exemplificados nesta parte por Portugal e Inglaterra, será uma constante nos próximos títulos “O rei do açúcar e outros monarcas agrícolas” e “As fontes subterrâneas do poder”.
O rei do açúcar e outros monarcas agrícolas
Antes de entrar propriamente em comentários sobre alguns tópicos, informações e contextos colocados sobre a economia e a política (que são um dos bastiões do livro), é interessante voltar o olhar para um dos títulos e descrições mais poéticas (se há possibilidade de associar tal palavra com o contexto de escravidão africana instituída para satisfazer as necessidades criadas pelo “rei açúcar”): “O Arco-íris é a rota do retorno à Guiné”.
1522 marca a primeira revolta de africanos feitos escravos na América, as “propriedades” dadas pelo “ouro branco” ao homem europeu. “Os escravos de Diego Colombo, filho do descobridor, foram os primeiros a se levantarem e terminaram pendurados em forcas nos caminhos dos engenhos”11. Outra forma de rebelião estabelecida posteriormente, foi a fuga em massa de escravos para regiões menos acessíveis, como as regiões altas do Haiti citadas por Galeano. Nesses lugares os tornados escravos ( os chamados “escravos quilombolas”) reconstruíram a vida que tinham em sua terra de origem, “as culturas de alimentos, a adoração de deuses, os costumes. O arco-íris marca ainda, na atualidade, a rota de retorno à Guiné para o povo do Haiti.” Essa última afirmação faz referência a um forma subjetiva de resistência e, talvez, certo consolo e esperança:
Também em Cuba se sucederam as revoltas. Alguns escravos se suicidavam em grupo; ludibriavam o amo “com sua greve eterna”, como diz Fernando Ortiz. Acreditavam que assim, carne e espírito, ressuscitariam na África. Os amos mutilavam os cadáveres, para que ressuscitassem castrados, mancos ou decapitados, e deste modo conseguiam que muitos renunciassem à ideia de matar-se. Por volta de 1870, segundo a versão de um escravo que, em sua juventude, fugiu para os montes de Las Villas, os negros já não se matavam em Cuba. Através de um cinturão mágico, “iam embora voando, voavam pelo céu e pegavam o rumo de sua terra”, ou se perdiam na serra, porque “qualquer um se cansaria de viver. (página 96 e 97)
Nesse contexto, Galeano resgata os registros do Quilombo dos Palmares, e mais do que apenas tratar superficialmente, como apenas uma citação (como geralmente é tratada qualquer elemento ou acontecimento que tem por protagonista e agente ativo os povos escravizados, ou os vencidos pela imposição materialmente e, posteriormente subjetivamente pelos ‘discursos historiográficos hegemônicos’). É explorado a organização, a importância e o simbolismo de Palmares, por mais que sejam dedicadas, em níveis quantitativos apenas duas páginas 12 .
A organização “à semelhança de muitos que existiam na África no século XVII”13, o autor expõe alguns motivos do sucesso do quilombo se manter invencível, à revelia das inúmeras expedições militares, por todo o século XVII, e com, relativamente, uma grande área de atuação e resistência (“estendia-se desde as vizinhanças do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a zona norte do rio São Francisco, em Alagoas: equivalia à terça parte do território de Portugal”14). Um simbolismo e informação bastante interessante, e, evidente de certa forma, porém mais explicitada no texto, é o fato de o Quilombo dos Palmares figurar como “o único lugar do Brasil que desenvolvia a policultura” na época. Pela geografia do lugar, cercada de selvas, e pela semelhança com o lugar de onde os escravizados vieram, foi possível cultivar milho, batata, feijões, mandioca, bananas e outros. Outro marco é a não circulação de dinheiro entre os habitantes do Quilombo: alimentos, terras, assim como o fruto do trabalho, eram “propriedades” coletivas, pertenciam ao todo. A lógica de constituição, muitas vezes ignorada, ou não vista com muita atenção, evidencia o caráter de união e mais motivos simbólicos contraditórios a ordem econômica vigente na colônia (e que mesmo modificando seu objeto ou commodity de exportação, trabalha sempre com as terras latino americanas a serviço dos mercados consumidores europeus, sem grandes reflexões acerca das peculiaridades, necessidades da terra em que utilizavam), além da possibilidade do fato de não figurar “na história universal nenhuma rebelião de escravos tão prolongada quanto a de Palmares.”
Voltando propriamente para o termo central do título, o açúcar, talvez, esse seja um dos “pontos altos” referente a tese de como e o porquê existem os ditos países “desenvolvidos” e os “subdesenvolvidos”. Trazido inicialmente por Cristóvão Colombo, das ilhas Canárias para a ilha caribenha do que constitui hoje a República Dominicana, a cana de açúcar forjou destinos (como dentre as inúmeras possibilidades de análise, as revoltas e resistências supracitadas). Com lastro na alta demanda do ultramar, e com vistas sempre no lucro que poderiam criar para si, os colonizadores trouxeram para as costas úmidas das Américas a cana. Em grandes plantações, foi preciso mão de obra, “combustível humano para queimar”15 , formou-se uma outra grande fonte econômica: a escravização africana e seu transporte ao longo do Atlântico.
Como esse ponto de partida, é traçado algo equivalente a uma linha do tempo e comentários sobre os ciclos produtivos de commodities. Galeano questiona o porquê (ao mesmo tempo que indica as respostas, e de forma analítica) de certas ocorrências, como áreas de grande prosperidade no período colonial, serem hoje regiões pobres e desabitadas, e estabelece relações com potências renascentistas, hoje constituindo centro de poder, centros econômicos, culturais (“Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz consigo ao povo latino americano, que com seu sacrifício, o cria”). Assuntos referentes à infertilidade do solo da exploração também são abordados, em intensidade menor.
Os “outros monarcas agrícolas” coloniais foram o cacau (especialmente na Venezuela), produto originário da América, o algodão, no Norte do Brasil (Maranhão) e no Paraguai, devido, sobretudo, a necessidade de matéria prima que os enclosures ingleses não ofereciam mais em medida satisfatória, a banana na Guatemala, Honduras e outros países, o importantíssimo ciclo da Borracha na Amazônia (são abordados alguns outros produtos relacionados com subsistência e com algumas drogas algumas vezes, porém em menor medida) e o café, que até mesmo hoje, ocupa grandes espaços nas balanças comerciais latinas.
A grande questão posta não são os produtos, mas o processo pelo quais determinados produtos moldaram e causaram. Geralmente, os ciclos econômicos surgiram abruptamente, pela necessidade de matérias primas primeiro da Europa, e posteriormente dos Estados Unidos, e, portanto, nunca deixavam algum projeto ou continuidade. Somado a isso, a dependência das colônias apenas relacionado a uma matriz econômica, resultou em desastres sucessivos. O que houve não foi desenvolvimento, através dos mecanismos também políticos, aliado a gestão, mas disseminação da pobreza, para sustentar o “inevitável” avanço ocidental.
Há inúmeros exemplos desses mecanismos políticos (política econômica) acoplados a impotência de mudança do elemento base (a terra), ilustradas a partir de tentativas de reformas agrárias nas Américas e golpes de estado, financiados, geralmente, por empresas multinacionais.
Um dos vastos exemplos e informações dadas (relembrando da peculiaridade dessa obra galeana) é a Guatemala no subtítulo “Quem deflagrou a violência na Guatemala?” que ilustra a relação de empresas, governos e política, praticamente inseparáveis. A United Fruit Co.,”dona de vastas terras, ferrovias e porto, virtualmente isenta de impostos e livres de controles” com a queda do ditador Jorge Ubico do poder, perdeu suas propriedades regalias. “As rodovias e o novo porto de San José romperam o monopólio da empresa de frutas sobre os transportes e a exportação. Com capital nacional, e sem estender a mão a nenhum banco estrangeiro, puseram-se em marcha diversos projetos de desenvolvimento que conduziram à conquista da independência.” Foi realizada ainda, sob a liderança de Jacobo Arbenz, uma reforma agrária em 1952, que tinha por objetivo “desenvolver a economia capitalista camponesa e a economia capitalista da agricultura em geral”, e embora tenha sido feita com propriedades, em sua maioria, improdutivas, a reforma deixou a United Fruit Co. com apenas 8% da porção que possuía anteriormente.
Com isso além de investir recursos em propaganda, para denegrir a imagem do país, a United Fruit Co. utilizou-se de diplomatas e militares.
O coronel Castillo Armas, graduado em Fort Leavenworth, Kansas, comandou contra seu próprio país tropas treinadas e equipadas nos Estados Unidos. O bombardeio de F-47, com pilotos norte-americanos, respaldou a invasão. “Tivemos de nos livrar de um governo comunista que havia assumido o poder”, diria Dwight Eisenhower nove anos depois.
Por fim Arbenz caiu. Depois dele houve sucessivos governos ditatoriais, como o governo de Julio César Méndez Montenegro (1966-1970) que disfarçado de governo democrático, “havia prometido uma reforma agrária, porém limitou-se a assinar a autorização para que os fazendeiros portassem armas, e as usassem”.
Galeano cita ainda as ditaduras de Maximiliano Hernández Martínez, em El Salvador, Tiburcio Carías em Honduras, todas onde os interesses de empresas estrangeiras prevaleceram sobre a necessidade das massas, com violência frequentemente ignorada, mas “também(...) e em maior medida, as matanças mais secretas: os cotidianos genocídios da miséria.”16
Seguindo para o final dessa parte, Galeano coloca em evidência outra importantes tentativas de reformas agrárias: a primeira reforma agrária da América Latina com José Artigas; a reforma agrária da Revolução Mexicana, e também na Revolução Cubana e a reforma agrária da ditadura militar brasileira.
Como se verá, e se sabe por conhecimento prévio ou experiência (no sentido em que muitas terras na América Latina, assim como a riqueza continua em mãos de poucas pessoas), as reformas foram revogadas, muitas vezes a base de sangue e fogo. Mas houve situações também, que fazem lembrar a icônica frase René Magritte: “Ceci n'est pas une pipe”, mas ao contrário do surrealista, sua intenção não era nobre, não era a busca por mais liberdade, dizendo que a arte não necessariamente deveria representar a realidade vivida, concreta. Falando uma mentira repetidas vezes, militares, políticos e oligarcas faziam um jogo com a realidade: o que se fala ou é publicizado não refletia a realidade, e isso, isento de qualquer significado poético ou nobre, fez-se reduzir a liberdade e direitos, através de sufocamento de vozes que foram caladas, muitas vezes, violentamente, e execravelmente. Assim, “C'est pas une réforme agraire” (“Isso é uma reforma agrária”), certamente é um bom nome para designar o que não foi uma reforma agrária na ditadura militar brasileira, assim como não foi uma reforma agrária o que fizeram o Equador e a Venezuela.
A ditadura militar que usurpou o poder no Brasil em 1964 em seguida tratou de anunciar sua reforma agrária. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, como observou Paulo Schilling, é um caso único no mundo: em vez de distribuir terra aos camponeses, dedica-se a expulsá-los, para restituir aos latifundiários as extensões espontaneamente invadidas ou expropriadas por governos anteriores. Em 1966 e 1967, antes que a censura da imprensa fosse aplicada com maior rigor, os jornais costumavam dar conta dos saques, dos incêndios e das perseguições que as tropas policiais levavam a cabo por ordem do atarefado instituto. Outra reforma agrária digna de uma antologia é a que foi proclamada no Equador em 1964. O governo só distribuiu terras improdutivas, ao mesmo tempo em que facilitava a concentração de solos de melhor qualidade nas mãos de grandes proprietários. A metade das terras distribuídas pela reforma agrária da Venezuela, a partir de 1960, eram de propriedade pública; as grandes plantações comerciais não foram tocadas, e os latifundiários expropriados receberam tão altas indenizações que, com tais esplêndidos lucros, puderam comprar novas terras em outras áreas. (página 141)
O último subtítulo (antes de adentrar no mérito da constituição geográfica/geológica e a política de “Fontes subterrâneas do poder”), intitulado “As treze colônias do Norte e a importância de não nascer importante”, traz comparações de semelhanças, mas, principalmente, diferenças que fizeram da América do Norte.
Primeiro, é citado a peculiaridade da ocupação da terra, e o objetivo que tinha com isso. Diferentemente da América do Norte, “a apropriação privada de terra sempre se antecipou (...) ao seu cultivo útil”17, e não teve por alvo a colonização de povoamento, como aconteceu ao norte, isso se reflete de várias formas inclusive nos grandes propriedade de terra na porção ao “sul do Rio Bravo”18 (“Uma paisagem sem homens: os maiores latifundiários ocupam, e não durante todo o ano, apenas duas pessoas por cada mil hectares”19). A diferença fica ainda mais evidente com as medidas jurídicas (formais) adotadas por cada uma das duas Américas: em 1862, Abraham Lincoln, com a Lei Lincoln, ou Homested Act, que garantia 65 hectares para cada família ao oeste do país. Ao contrário dos países latinos, que asseguram por lei, ou por bala suas terras para poucos. Além disso, inicialmente as terras ao Norte não eram férteis como ao Sul e não apresentavam qualquer vestígio de ouro ou prata. Isso, mais certa liberdade econômica para com a metrópole possibilitou o desenvolvimento autônomo dos Estados Unidos que posteriormente se tornaria um país imperialista, rendendo muitas declarações feitas como as relacionadas ao seu vizinho: “Coitado do México! Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”.
O fato da terras ao Sul serem ricas rendeu-lhes a destruição.
As fontes subterrâneas do Poder
Os grandes agentes aqui são as empresas petrolíferas ou ligadas ao ferro e ao aço: Standard Oil, Bethlehem Steel, Hanna Mining Co., Gulf, Anaconda Copper Mining Co., Kennecott Copper Co., Creole Petroleum, Shell, que definiram governos, destinos e desempenho econômico de uma série de Estados-nações latino-americanos, que, paradoxalmente, tem sua soberania colocada em xeque, seja de forma moral, social, e intelectual, por meio da imprensa, seja por meios concretos, intervenções militares, revogação de direitos constitucionais, estado de sítio, etc.
Um exemplo, praticamente, caricato se não fosse real foi a perda da página 11, sem nenhuma explicação ou motivo, no Peru, em que estava descrito as taxas e pagamentos que a Standard Oil deveria cumprir com o governo. Nisto, o presidente Belaúnde Terry é derrubado, e Velasco Alvarado toma a liderança do país, e nacionaliza os poços e a refinaria da empresa (história, que novamente, não acabará com nova privatização). Além disso, secretários de estado, diplomatas e outros agentes de governos latinos, ao mesmo tempo em que cumpriam suas funções públicas, ocupavam altos cargos nas empresas.
Das quase 40 páginas desta seção as informações, as informações são, como em toda obra, muito abundantes, e curiosas. A que mais, talvez se sobreponha, são situações como: a falta de oferta de petróleo e muita demanda, porém os preços muito abaixo do que deveriam estar (naturalmente, aqui se fala em referência aos países latino americanos), isso porque era conveniente acabar com nacionalizações, e políticas econômicas que priorizasse as necessidades do país em questão; a frase quase profética do Washington Post, nas vésperas do golpe de estado no Brasil, “Eis aqui uma situação em que um bom e efetivo golpe de Estado, no velho estilo, de líderes militares conservadores, pode servir aos melhores interesses de todas as Américas”; o ditado dos preços por quem consome, e não por quem produz (lógica que não se aplica aos países desenvolvidos quando a situação é contrária); e, principalmente, novamente, algumas explicações sobre eventos brasileiros que, geralmente, são desconhecidos como o caso de Jânio Quadros, um presidente que todos ouvem que renunciou de forma irracional e porque não tinha apoio no Congresso, sem motivos muito claros, ou concretos, mas a prosa e a contextualização trazem um motivo, ao menos, mais plausível: a empresa americana Hanna Mining Co. estava sob “ataque”.
Em 21 de agosto de 1961 o presidente Jânio Quadros assinou uma resolução que anulava as ilegais autorizações estendidas a favor da Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os ministros militares obrigaram Quadros a renunciar: “Forças terríveis se levantaram contra mim...”, dizia o texto da renúncia.
Embora, como tenha dito Galeano em 2014, durante 2ª Bienal do Livro de Brasília, que seu livro não tenha cumprido seu propósito original (“‘Veias abertas’ pretendia ser um livro de economia política, mas eu não tinha o treinamento e o preparo necessários”20), todas as informações são bastante úteis, até como ponto de partida para demais pesquisas e conferências de fatos, isso porque faz sentido o dito nesta obra. Especificamente sobre “As fontes subterrâneas do poder”, a tese principal (ou uma das principais): as ditaduras militares na América Latina coincidiram com políticas protecionistas latinas que colocavam em xeque os lucros ingentes das empresas relacionadas ao setor mineral americano (é preciso lembrar também que essa época é marcada pelo crescimento industrial e tecnológico, além de militar, considerando muitas vezes os minérios como essenciais na soberania e segurança norte americanas). Outro ponto explorado são: quais minérios são esses e suas localizações, além de inúmeras relações estabelecidas socialmente (movimentos populacionais, políticas de controle de natalidade), politicamente e economicamente, como a Serra do Navio, no Amapá, o Projeto Carajás, no norte do país.
A segunda parte, intitulada como “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes”, conta, ainda com duas repartições: “História da morte prematura” e “A estrutura contemporânea da espoliação”.
Tratando de temas como a Guerra da Tríplice Aliança; as ferrovias latinas, o livre cambismo e protecionismo dos Estados Unidos; a industrialização; a tecnologia que “não fala espanhol”; “a invasão do bancos”; o Fundo Monetário Internacional; a integração da América Latina, Galeano conclui sua obra citando Simón Bolívar, com o que parece ser o destino de ricas terras, que a cobiça de pessoas que lançam mão de meios indizíveis de violência, em vários aspectos, e o caráter redutor de liberdade e oportunidades: “Nunca seremos afortunados, nunca!”.
Mas, diante de tudo isso, embora a história demonstre impotência diante dos países ao Norte, também mostra resistência, e as diversas peculiaridades dessa terra latina. Uma das formas de resistir e ir a frente, já que essa história afeta a todos, é conhecer. Neste sentido a obra de Galeano pode ser uma boa inicialização e, como dito, utilizado como ponto de partida para mais pesquisas, para mais conhecimento. Apesar de ter sido escrito há mais de 40 anos, há necessidades atuais de nos remetermos a ele, pois, utilizando-se da clássica frase, mas não falsa, é, também, atual.
Notas
¹ https://brasil.elpais.com/brasil/2014/05/04/cultura/1399232315_232658.html, acesso em 08/07/2017
² página 30
³ página 18
4 O livro de "A Veias Abertas tentou ser um livro de economia política, só que eu não tinha a formação necessária" (...) "Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas foi uma etapa que, para mim, está superada".
5 página 35
6 página 60
7 página 57
8 https://soundcloud.com/salvo-melhor-ju-zo/smj-8-judiciario-e-ditadura, o episódio do podcast é um exemplo. Voltado a discutir questões com uma ótica do Direito, o projeto “Salvo Melhor Juízo” traz pessoas do âmbito acadêmico para discutir determinadas pautas colocadas.
9 página 37
10 página67
11 página 95
12 recorrendo ao mecanismo de Ian McEwan, em Atonement, e mesmo mais concretamente, poucas palavras podem trazer grandes questões, pelo amplitude de realidade que trazem
13 PÁGINA 96
14 página 96
15 páina 71
16 página 128
17 página
18 O Rio Bravo é uma das fronteiras naturais entre Estados Unidos e México
19 página 138
20http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/05/1460235-eduardo-galeano-muda-de-ideia-sobre-as-veias-abertas-da-america-latina.shtml acesso em 08/07/2017
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